A escória que era amada
Exibida entre 2004 e 2012, House M.D. centrou-se ao redor de seu personagem-título, o Doutor Gregory House, chefe do Departamento de Diagnósticos Médicos. Ele é, provavelmente, a personificação de todos os adjetivos negativos que já existiram na história humana. Seu interesse em casos médicos "extraordinários", "bizarros", difíceis de serem trabalhados, somado à sua quase hiperfixação somente às discussões que, ou o beneficiem, ou estão relacionadas à condição médica do paciente, faz com que House ignore, ou escolha demonstrar, todo e qualquer traço de sentimentalismo, contato social e humanidade que alguém poderia ter.
Ele se recusa a ver o paciente que está tratando naquele momento, profere piadas de baixo calão, até mesmo ofensivas, para, literalmente, todo mundo (sem distinção, porque ele não é racista), possui uma necessidade IMENSA de estar certo, e
irá até a morte (do paciente, não dele)
para provar seu ponto. E se o tratamento não der certo,
a culpa, segundo ele, na maior parte das vezes, será do paciente por esconder, esquecer ou deliberadamente mentir a respeito de algum sintoma. E, ainda assim, ele possui uma grande quantidade de fãs. Como?
House não seria tão marcante quanto continua sendo se não fosse por seu intérprete. A capacidade de
Hugh Laurie, tanto para o drama, como para a comédia através do sarcasmo e da depreciação de absolutamente tudo e todos, exceto ele, definitivamente conquistaram David Shore e sua equipe, que, certamente, sentiram-se bastante confortáveis para testar os limites da sentença "os fins justificam os meios" e conseguirem fazê-lo se safar disso de uma maneira crível. Por isso que, dos 177 episódios da produção,
o personagem só esteve ausente em apenas um. Claro que com um preço, obviamente, já que Laurie passou a fazer terapia por causa do
estado de sua saúde mental.
Além da casa
De nada adiantaria um personagem principal cativante, embora incorreto e exagerado em todos os sentidos, se não houvessem colegas de trabalho tão interessantes quanto (mas um pouco menos, pra não roubar o estrelato) para compensar tamanha arrogância. Nesse caso, refiro-me à primeira equipe de subordinados de House, os doutores Foreman (Omar Epps), Chase (Jesse Spencer) e Cameron (Jennifer Morrison), seu melhor amigo, Dr. James Wilson (Robert Sean Leonard), chefe do Departamento de Oncologia, e sua chefe, a diretora do hospital-escola Princeton-Plainsboro, Dr. Lisa Cuddy (Lisa Eldenstein). Cada um com sua bagagem de peculiaridades e problemas.
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Da esquerda para a direita: Wilson, Cuddy, Chase, House, Camerom e Foreman. |
Cameron sente-se atraída por homens à beira da morte ou com algum tipo de condição médica permanente. Não emocionalmente, como ela pensa, mas sim por sua necessidade alimentar sua fantasia de ser capaz de "consertá-los". Chase, ainda com 15 anos, teve que lidar com o abandono do seu pai (embora ele tenha continuado a mantê-los financeiramente) e uma mãe alcoólatra sozinho até que ela faleceu 10 anos antes do início da série.
Mesmo com uma infância cercada pelo crime, e alguns delitos que ele mesmo cometeu, Foreman saiu como primeiro da turma no colegial e na faculdade de medicina como um grande neurologista, mas várias vezes deixou-se levar por sua hipocrisia ao questionar os métodos de House, mas utilizá-los quando lhe foi dada a oportunidade de liderar um caso. Wilson chegou a um ponto da sua vida em que sua amizade com o House é sua única constante. E isso já diz muito sobre ele.
Cuddy se diz ser a única que consegue conter os impulsos de House. Embora soubesse dos riscos que viriam ao contratá-lo, ainda assim o chamou para o trabalho e criou um fundo especial para gastos legais que envolvessem o doutor. Como diretora do hospital, já teve que ser complacente com pessoas ricas que, ao doarem para o hospital, obtinham participação majoritária no conselho administrativo e queriam, praticamente, que o hospital deixasse de ser um hospital e só foi tomar alguma atitude correta quando as demissões começaram a acontecer pelo simples motivo do novo "dono" querer que tal pessoa saísse.
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E ainda tem mais gente pra chegar depois... |
Por trás das telas
Quando você olha para a série como um todo, quase 20 anos depois da estreia, é fácil perceber ou saber uma outra coisa dos bastidores da produção, como o fato do Hugh Laurie ser um ator britâncio que fez o criador da série, David Shore, pensar que ele era americano nascido e criado graças a um sotaque praticamente perfeito, ou as influências de Sherlock Holmes na criação, tanto da figura do House, como no relacionamento entre ele e Wilson. Ainda assim como o próprio doutor, aposto 20 que posso surpreender com uma coisinha ou outra. Fechado?
Pois bem, em 2006, em entrevista ao portal canadense MacLeans, Shore revelou que, pra começo de conversa, a ideia da série nem é dele, mas sim seu colega e produtor executivo Paul Attanasio, que, basicamente, leu uma coluna médica na New York Times Magazine, pensou que era uma boa ideia para uma série e David desenvolveu um roteiro a partir disso.
Além disso, a produção foi vendida para o então canal FOX como "um drama policial onde germes eram os principais suspeitos", sendo então a resposta da emissora a duas das premissas mais bem-sucedidas da TV americana nos anos 2000: procedural médico (Obrigado, ER) e drama policial (Obrigado, CSI).
Já se perguntou o porquê de cenas em que alguém do elenco "vai" até a casa de um paciente ou qualquer outro local à procura por alguma coisa que possa apontar a direção para o "culpado"? Agora você sabe, mas isso não muda o fato de que não há nenhuma cena de qualquer paciente dando autorização para fazer essa "visita", algo que o próprio House diz que, se o paciente tiver algo a esconder, ela não autorizaria.
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David Shore, criador, e Hugh Laurie, protagonista. |
E mais, o personagem-título da série só foi idealizado após a ideia ter sido aprovada pela emissora, como uma necessidade para desenvolver a série além da ideia inicial e explorar aquilo que Shore estava mais interessado: as controversas, exageradas e cruéis ações de House. Ele até afirma que um executivo acabou descrevendo a série como se Simon Cowell [popular jurado de vários programas de talentos nos EUA e Reino Unido] fosse um médico. O executivo foi cirurgicamente certeiro.
E não para por aí. Em 2015, em uma sessão de perguntas e respostas realizada no subreddit Ask Me Anything (Pergunte-me Qualquer Coisa, em tradução livre), Shore afirmou que, além da óbvia inspiração em Sherlock Homes, outra figura da ficção que influenciou a criação do icônico Gregory foi Marcus Welby, protagonista de um dos mais populares dramas médicos da TV aberta americana na década de 1970. E uma pequena pesquisa esclarece a origem de um dos maiores pontos fortes da série: o contraste entre House e sua equipe quanto às práticas médicas.
Dois lados
"Eu tomo riscos. Às vezes, pacientes morrem. Mas não tomar riscos resulta na morte de ainda mais pacientes, então eu acho que meu maior problema é que eu fui amaldiçoado com a habilidade de fazer as contas."
Essa citação do próprio House é capaz de sintetizar seu personagem quase que inteiramente, algo que fica evidente ao compreender seu passado e suas motivações. Ele sabe o que é dor, já que terá que viver com isso para sempre. Ele será a pessoa mais ranzinza, antipática, imprevisível, egocêntrica, nojenta, asquerosa [insira outros adjetivos negativos aqui] que você já encontrou em sua vida... mas você só estará vivo por causa dele. Você nunca vai querer que alguém assim te atenda. E é exatamente por isso que ele é um dos personagens mais interessantes da TV dos anos 2000.
Só espero que esse nível de qualidade se mantenha constante ao longo do resto da série, porque eu só estou na segunda temporada, mas, para meu diagnóstico de vicío e apego emocional em doutores moralmente errados, o único tratamento é ir até o fim disso tudo.