“Quem é você? Eu quero conhecer você.”
Assim é a fórmula mágica para uma vida bem-sucedida em Neuerkerode,
uma vila gerida pela Fundação Evangélica Neuerkerode, em que seu aniversário de
150 anos culminou na publicação da graphic novel -encomendada- “Aprendendo a
Cair”, escrita e ilustrada pelo artista alemão Mikael Ross.
Inclusiva e funcional, Neuerkerode é composta por habitantes,
em sua maioria, com algum tipo de transtorno mental, mas que seguem suas vidas e
atividades diárias como a de qualquer outro, de qualquer cidade ou local. Conseguem
encontrar independência de acordo com suas capacidades. Criada em 1868 pelo
pastor Gustav Stutzer, a partir de uma iniciativa privada, inicialmente cuidava
de apenas cinco meninos com deficiência.
Em entrevista concedida à CCXPWorlds, evento que aconteceu
online, no último domingo dia 6, Mikael Ross explicou como recebeu o pedido da
concepção do quadrinho:
“Eu estava bloqueado na época, não sabia se eu devia procurar
outro trabalho ou continuar nos quadrinhos. Eu estava chocado com o local que
estava morando e perguntei para um roteirista alemão se ele conhecia algum
local no interior, fora da cidade, e ele me deu um número que tinha a ver com
quadrinhos. Liguei e falei com o diretor do local. Na qual é uma instituição
onde vivem umas 800 pessoas com algum tipo de deficiência mental. É uma instituição
e uma vila. O diretor disse “olha, vamos ter nosso aniversário agora de 150, estávamos
pensando em fazer uma estátua ou compêndio chato que ninguém vai ler. E aí eu
pensei, você pode fazer um quadrinho!”. Então perguntei “Você quer um quadrinho
do local?” e ele respondeu “Não, não. Eu quero que você faça o que quiser, me
fala quanto dinheiro você precisa, você pode ir e vir, quando quiser e sentir a
atmosfera aqui, faça o que você quiser. O que você acha?” E assim começou esse
livro.”
Mikael Ross mostrando a edição brasileira durante a CCXPWorlds |
O autor também comentou sobre os desafios e sua pesquisa -laboratório-
dentro da instituição:
“As pessoas nessa instituição têm deficiências mentais, então eu pensei “Vou entrevistá-los”. Mas eles ficavam: “Ah, quem é esse cara?”. Outros dormiam enquanto a gente tentava entrevistá-los. Não funcionou nem um pouco. E aí eu precisei encontrar outra forma de pesquisar e basicamente foi circular por lá. Eu ia a cada duas, três ou quatro dias, eu alugava um espaço...eu passei um tempo lá. Me tornei parte dessa vila, porque eu estava sempre lá. As pessoas descobriram que eu era, elas eram muito abertas, me senti bem recebido. Aos poucos as pessoas foram me contando suas histórias. O que tinha acontecido nas suas vidas, nas suas carreiras. Quais eram os seus desejos, os seus medos. Bem aos pouquinhos coisas foram pingando. Não em entrevistas, mas simplesmente por estar lá, e às vezes surge a oportunidade de você fazer uma pergunta para alguém, mas só se o momento for apropriado. Então eu precisei esperar esse momento. A situação certa. E foi um pouquinho difícil. Estar lá, estar tranquilo. E ao mesmo tempo ao chegar esse momento, estar alerta para captar essas frases. Porque muitas frases presentes no meu livro são frases que as pessoas disseram nessa vila e eu não tinha gravador, logo precisava estar muito presente quando alguém estava contando algo que eu queria que fosse parte do livro. Mas essa foi uma parte divertida do quadrinho, porque as pessoas são super divertidas, eu adorei. E eles me deram tanto, eu saí de lá como se tivesse recebido um presente. Eles também me modificaram.”
Meu primeiro contato com a capa e o seu título, me encantaram
logo de cara, mesmo antes de saber ao certo do que se tratava a história. O Noel,
com sua roupa de pijamas e chinelos, e capa de super-herói feita de lençol.
Para Mikael Ross, Noel, o protagonista da série, é o
personagem que ele mais ama de seus personagens:
“Ele tem bom coração. Um coração muito lindo. Eu nem sei de
onde saiu, porque eu fiz a pesquisa, escrevi o personagem, as cenas, alguma coisa
acontece quando tudo se junta, toda essa pesquisa. Os roteiros, os desenhos,
você começa a ver coisas no papel e o personagem se comporta de certa forma e
aí você sabe que é o produto de você e de suas influências, mas também é algo
além, não é só a junção dessas duas coisas, e esse é o Noel. Por isso eu
comecei a admirar tanto esses personagens. E é um tanto cliché, tantos autores falam
tantas coisas que começam a se envolver com seus personagens, mas você sente
quando é o caminho quando acontece entre o criador e o trabalho que ele está
criando.”
Outro detalhe que me chamou a atenção foram as cores -muitas- utilizadas, a textura. O autor explicou que para transmitir emoção, inicialmente começou com o preto e branco, com tinta e nanquim, porém em se tratando de uma história doce, que o mesmo a classifica, o preto e o branco era “muito duro”. Ele continuou com a aquarela, que já havia trabalhado antes, mas “virou uma bagunça”, então ele resolveu visitar a oficina de artes da vila, um local que ele costuma ir, já que eles entendiam a linguagem de Mikael e vice-e-versa. Muitos ali trabalhavam com lápis de cor, e a partia daí aderiu a técnica, que descreve como não ser fácil e “dói o dedo”, mas que se encaixou muito bem.
Um trabalho realmente artesanal e correspondência para essa
história.
Quanto aos materiais, caneta e papel, o autor diz trabalhar
com o que tem. Uma caixa de lápis de cor antiga e papel barato.
“Normalmente prefiro papel barato, porque aí não tenho
pressão, não é, se eu estragar. Não tem que acertar logo de cara. Se eu comprar
um papel que é tipo 5 dólares, a folha, daí tem que valer a pena.“
Tintim, protagonista da série de quadrinhos “As Aventuras de Tintim”, do artista belga Hergé, é uma das grandes influências de seu trabalho. Chegou até a morar um ano na Bélgica como estudante, e inicialmente pego de surpresa ao saber que a região é a terra natal de Tintim. Para ele a terra natal de Tintim era a França, o mesmo que me acometeu por muito tempo. Ali também conheceu um artista que fez parceria nos seus dois primeiros trabalhos.
Uma curiosidade é que Mikael estudou design de figurino e essa
formação tão específica o ajudou a “vestir os personagens”:
“Fiquei muitos anos aprendendo junto com a Ópera House, os figurinos, eu aprendi com eles, como fazer ternos, calças, vestes, coletes e sempre amei a ópera. Ela guiou a minha vida até muito recentemente. Eu não sou tão ligado no mundo da moda, eu sou trabalhador. Dos figurinos. E tem uma conexão com o desenho, não é? Porque você precisa vestir seus personagens. Então quando a gente pensa no figurino...eu gosto de uma citação de um dos meus artistas prediletos, George, ele é alemão, ele foi um artista muito famoso após a primeira guerra mundial e desenhou soldados nas cidades...era um grande artista. E ele dizia: “Como artista, você precisa ser alfaiate, porque você precisa conhecer cada ângulo, cada medida, você precisa conhecer. É parte da sua formação. Você precisa acertar isso.” E é verdade. A minha avó também sempre olhava para as pessoas e o que estavam vestindo. Quando era criança, ela ficava comentando “Olha ali o que ele está vestindo, olha aquela camiseta”. Então eu aprendi a prestar atenção. Porque ao vestir um personagem pode de certa forma dar mais personalidade para esse personagem, não é? Vai além.”
Sobre o contato atualmente com pessoal de Neuerkerode, ele
explica que não é possível em decorrência da pandemia, especialmente por terem
comorbidades. Não havia ninguém diagnosticado com a Covid-19, porém há umas
duas semanas apareceu uma pessoa contaminada. E é um pouco difícil explicar
para as pessoas de lá que não podem sair, voltar a trabalhar, que algumas
coisas estão fechadas.
“A próxima coisa que estão planejando é um dia de leitura,
tem o dia nacional aqui de leitura, então e vou fazer uma leitura de quadrinho,
eu vou mandar um vídeo para eles. Aí tem dvds, é possível levar lá para a vila,
mas no momento não é. Tem tantas coisas que estão difíceis. Eu não posso ir lá,
mas normalmente sim, eu ia visitar de vez em quando.”
Muitos autores centralizam suas próprias características, passagens particulares, para compor seus personagens e principais. Mikael Ross teve uma missão diferente, um quadrinho encomendado, mas nem por isso não deixou de se envolver, utilizando de suas influências e as vivências laboratoriais dentro da vila de Neuerkerode, com carinho, respeito e dedicação para compor “Aprendendo a Cair”, conseguiu transmitir com delicadeza, de forma tocante, séria, e por vezes divertida, uma história sobre recomeço, do ponto de vista de um jovem com necessidades especiais, em busca de seu lugar no mundo.
Sinopse
“Em quem ele pode confiar? Quem ele pode amar? Quem o ama de verdade?”
Neuerkerode é uma vila alemã gerida inteiramente por pessoas com algum tipo de deficiência mental. Eles administram o restaurante local, o bar, o supermercado – eles estão no comando. É um lugar lindo, quase inacreditável, que realmente existe, e é lá que esta história se passa.
Noel vive há muitos anos com a mãe em um pequeno apartamento em Berlim, até que um dia tudo muda. Ela cai. Um derrame, ao que parece. De repente, ela está no chão, rodeada por uma grande poça de sangue. A vida de Noel se abala radicalmente. Então um homem com bigode surge e afirma que Noel não pode mais ficar sozinho em seu velho apartamento. Ele tem que se mudar, para longe de Berlim, para longe de casa. Para um ambiente completamente diferente, um centro de acolhimento para outras pessoas com deficiência. Pela primeira vez na vida, Noel está sozinho. Mas também é a primeira vez que ele vive com tantas outras pessoas.
“Aprendendo a Cair” levou dois anos e meio para ser finalizada e lançada, em 2018, e vencedora do Max Und Moritz, o grande prêmio alemão dos quadrinhos. No Brasil, a versão brasileira foi lançada este ano, pela editora NEMO.
Conclusões e alguns possíveis spoilers
A importância da representatividade. Da inclusão e do respeito.
Batman humano, por Mikael Ross |
Boxeadora, por Mikael Ross |
Em um primeiro contato que tive com a obra do Mikael Ross, há alguns dias que adquiri, o personagem do Noel não me chamou atenção somente pelas cores do quadrinho e seu título.
Independem de força física. Padrão estético ou corporal.
E ainda assim conseguem proteger seus sonhos, seus sentimentos mais
puros, e manter suas esperanças.
São aqueles com os quais me identifico. Tangíveis. Humanos. Em toda sua essência e significância.