Na segunda temporada de Coisa Mais Linda, mais uma vez a
série da Netflix faz um trabalho histórico digno, ao mostrar porque mulheres
sempre foram tratadas como propriedade. Bem, se você ainda não assistiu a nova
temporada da série, ou não gosta de spoilers, não indico a leitura desse artigo.
No final da primeira temporada de Coisa Mais Linda, Augusto,
marido de Lígia, atira em Malu e na esposa. Quando começa a segunda temporada
Pedro, marido de Malu, aquela gracinha que abandonou a mulher sozinha com o
filho que depois precisou se reinventar e abriu o Coisa Mais Linda, volta de
sua crise existencial e assume o seu bar. É, pessoas, o bar estava no nome do
cara, pois existia uma lei que proibia mulheres de ter um negócio próprio.
Atraído pelo sucesso da mulher, o alecrim dourado volta de seu retiro para
assumir o que é seu de direito. Sim, era dele por direito, a lei garantia isso.
O que significava que o cara largava a mulher a própria
sorte, a mulher se virava como podia, entretanto, em caso de sucesso o cônjuge
podia voltar e assumir o que era dele, garantido por lei. Aliás, ninguém
questionou o que a criatura fez durante o tempo que passou fora, nem a
legitimidade do negócio da mulher, quem mandou ela falsificar a assinatura do
marido? Afinal, o sistema da época não era responsável pelas decisões
equivocadas que as pessoas eram obrigadas a tomar em momentos de desespero.
Ademais, não vou ficar discutindo se a atitude de Malu, Maria Casadavell, foi
correta, só posso dizer que falsificação é crime e o que ela fez bem
questionável.
Numa das cenas mais emblemáticas, temos o advogado de Malu
dizendo “fizemos isso para proteger vocês”. Mas é muita generosidade, né, gente?
No que Malu rebate “nos proteger da nossa própria liberdade”. Um dos melhores
diálogos da série, mas por que eu desviei do assunto? Para contextualizar.
Ao longo da história, tivemos diversas leis que impediam as
mulheres de ir e vir (como o artigo 230 da Constituição
Federal de 1960), que ainda estava em vigor na época em que os
acontecimentos da série ocorrem. Como a lei que proibia mulheres de andar
sozinhas sem a autorização do marido, e votar, entre outras que só de pensar
dá vontade dá até arrepio.
Em outra cena, o viúvo de Lígia, Fernanda Vasconcellos, procura
Malu para dizer que estava arrependido do que fez, e que voltou para pagar por
seu erro, segura essa informação.
O julgamento de uma mulher que batalhou pela própria existência
Então começa o julgamento, e o show de horror também, uma
vez que de vítima, Malu passa a ser considerada culpada, pois atitudes obrigaram
o pobre viúvo a matar a mulher para defender sua honra. Já que, desde que Malu
voltou a conviver com sua amiga Lígia, a personalidade de sua amada esposa
mudou completamente. Dado que Lígia começou a cantar no Coisa Mais Linda e
queira o desquite.
Enfim, a responsabilidade pelo fracasso do casamento era
toda de Malu, não dele, que era violento, espancava e estuprava a esposa. Só
para deixar bem claro, sexo
sem consentimento é estupro, mesmo que os envolvidos sejam casados. Visto
que não é não.
No final do julgamento Augusto, Gustavo Vaz, foi condenado pelo assassinato de Lígia,
todavia a tentativa de matar Malu passou batida. Só que o pior ainda estava por
vir, Augusto pegou uma pena leve e respondeu em liberdade condicional por ser
réu primário e um membro respeitável da sociedade.
No decorrer de todo o julgamento, somente Malu foi humilhada
de todas as formas, e o pobre marido justificado por defender sua honra. Então
voltando ao dia que Augusto foi ao encontro de Malu para avisar que tinha
voltado para pagar por seu erro, aquilo, de fato, foi uma ameaça velada. Pois,
ele tinha certeza de que sairia incólume das acusações.
Crime passional: precisamos dar um basta
É essa certeza da impunidade que colabora com o aumento dos
casos de feminicídio no país, além de toda uma estrutura social que durante
muito tempo permitiu que homens tratassem mulheres como quisessem sem sofrer
nenhuma punição.
Medida protetiva não é efetiva se não existe suporte a
mulher, se as penas, quando existem, são brandas. Por fim, se os números da violência contra a
mulher só aumentam é indicativo que alguma coisa está errada.
No final das contas, Augusto deu seguimento a sua vida,
encontrou uma mulher igualzinha a que ele matou. Se Lígia era tão péssima
esposa por que ele arrumou uma substituta com as mesmas características
físicas? Infelizmente, Lígia foi a única que perdeu sua vida, esse tipo de
reparação não é possível. O que precisamos é evitar que outras Lígias percam a
vida.
A segunda temporada de Coisa Mais Linda traz mais reflexões
que a primeira, simplesmente maravilhosa.