Quem nunca quis ter uma segunda chance e consertar algum erro do passado? Certamente qualquer um que tivesse este poder em mãos nem pensaria duas vezes antes de utiliza-lo, não é mesmo? E é justamente essa a premissa de Repeteco, HQ de Bryan Lee O’Malley (mesmo criador da aclamada série Scott Pilgrim contra o Mundo) que, na simplicidade de seus traços, nos leva a uma trama mais pesada em comparação com sua obra anterior, porem bastante significativa.
Bem-Vindo ao Repeteco! Posso anotar o seu pedido?
Repeteco conta a história de Katie Clay, uma chef de cozinha e dona do melhor restaurante da cidade: O “Repeteco”, que sustentou essa fama por três anos consecutivos. Aos seus 29 anos, Katie está chegando a uma crise de meia idade e com a ajuda de Arthur (seu sócio), pretende abrir um novo restaurante mais próximo da civilização. Entre altos e baixos, os problemas de Katie só tendem a aumentar, e, diante de algumas paranoias, eis que surge uma possibilidade muito esquisita para resolvê-los.
A turma do Repeteco |
A história possui diversos personagens, todos atrelados a Katie com estereótipos bem diversificados: a meiga Hazel, que faz o papel da “amiga gata quietinha”; o sagaz Andrew, que busca ser um chef tão talentoso quanto sua tutora; o estiloso Max, que assume a postura do “ex-arrependido”; a misteriosa Lis, que vive atormentando a protagonista em sua moradia; além de vários outros que conseguem dar um charme a mais em cada momento do enredo. A narrativa também é um ponto bastante interessante, já que apresenta um narrador observador com o qual Katie interage na maior parte da trama (passando uma ideia de “quebra da quarta parede”), o qual garante bons momentos de alívio cômico.
De novo, de novo e de novo...
Falando mais a respeito do enredo, depois de criar uma série de confusões em um único dia, Katie encontra durante a noite uma misteriosa caixinha em seu apartamento. Esta continha um caderno intitulado “Meus Erros”, um bilhete e um cogumelo. A ideia é bem simples: O usuário, após escrever o erro no caderno deve, ingerir o cogumelo e dormir, pois assim ele repetirá o dia em questão, corrigindo os erros que foram escritos no caderno. Com o desenrolar da história, Katie começa a descobrir mais coisas estranhas das mais bizarras formas possíveis.
Katie em sua reflexão sobre escolhas |
Além da temática diferente, voltada para pratos e cozinha, diversos conceitos da ficção científica sobre viagem no tempo se misturam com elementos sobrenaturais, trazendo mais carga para a trama. Os “espíritos do lar” atrelado a utensílios velhos, por exemplo, colam com as realidades alternativas criadas por Katie de maneira genial, isso sem mencionar como a ideia das linhas do tempo funciona de modo bem fluido na história. A forma como a protagonista encara a possibilidade de repetir os eventos, ao ponto de tornar-se algo viciante e descontrolado em suas mãos, convence até os mais fissurados no assunto de como mexer/alterar a linha do tempo pode deixar sua vida mais complicada do que já está.
O mundo dá voltas... E o tempo também!
Para quem já acompanha os trabalhos de O’Malley, pode perceber uma gradativa melhora na narrativa de Repeteco: Mesmo com as suas 329 páginas, a leitura é bem rápida e a linguagem te prende de um modo bem relaxante e prazeroso. Os traços também estão melhores e os clássicos elementos cômicos e exagerados de seu estilo fazem presença, alem é claro dos easter eggs para os fãs mais assíduos (alguém mais viu o Scott Pilgrim e a Ramona Flowers no Repeteco?).
Scott e Ramona parecem apreciar o Repeteco |
O título da HQ não poderia ser mais completo. Repeteco faz uma brincadeira com a temática de restaurante (na qual se repete um prato) com a ideia de voltar no tempo (onde se repete o dia), alem do próprio nome da protagonista, Clay (do inglês, argila), remeter a possibilidade de modelar a realidade como melhor parecer.
Lógico que nem tudo são rosas em Repeteco: Apesar da riqueza de personagens, a centralização em Katie não permite que eles possam ser mais trabalhados dentro do desfecho, e até mesmo Lis, que tem uma participação pra lá de fundamental no enredo, no fim das contas acaba sendo só mais uma alavanca para o desenrolar da “aventura” de Katie. Isso chega a ser um tanto quanto desanimador, já que em obras anteriores de O’Malley víamos o quanto os coadjuvantes eram bem explorados, ganhando por vezes até subtramas.
Uma escolha que vale a pena?
Verdade seja dita: Repeteco nem de longe é a obra mais “viajada” de O’Malley (os personagens não sabem que vivem dentro de uma história em quadrinho e muito menos entram em batalhas surreais como lutadores de videogame), mas também não chega a ser um sci-fi matematicamente correto e ajustado. Ele soube muito bem encontrar o meio termo entre ambas as partes e elaborar algo original de uma forma impressionante.
Os galhos das infinitas possibilidades |
Repeteco ainda deixa a mensagem que a vida é feita de escolhas, quer sejam boas ou ruins, e que acima de tudo não devemos nos atrelar a erros do passado, mas sim aprender com estes para amadurecer e não cometê-los novamente no futuro. Além disso, a obra desperta uma estranha sensação de releitura após termina-la, principalmente para atentar-se a detalhes que passaram despercebidos da primeira vez. Em suma, o leitor encontrará suspense, comédia, mistério, “plot twist” e claro, a vontade de rever tudo nem que seja só mais uma vez. Isso é Repeteco: Um prato cheio para todos os gostos.