Imagine um mundo no qual as drogas são liberadas e a tecnologia está disponível ao alcance dos olhos. Agora imagine essa história no Brasil, mais precisamente em uma Porto Alegre de 2038. Um Passeio no Jardim da Vingança é uma ficção policial futurista em um mundo no qual, além da tecnologia, a capacidade de memórias e aptidões humanas se ampliam por meio dos implantes cibernéticos. Nesta cidade distópica, dividida entre zonas vigiadas e periféricas, se passa toda a narrativa que Daniel Nonohay apresenta ao leitor, em um livro instigante e que te prende do começo ao fim.
A narrativa conta a história do advogado Ramiro, personagem principal que não tem mais perspectivas na vida. É rico, drogado, adúltero, já não gosta mais do trabalho, até sofrer um atentado terrorista em meio a uma audiência e quase morrer. A trama segue com o protagonista descrevendo como foi se recuperar de dois meses em coma e a tentativa de retomar a vida no escritório de advocacia. Depois de ser impedido de retornar ao escritório e ter o ego ferido, Ramiro começa a utilizar a tecnologia disponível, inclusive dois chips implantados em seu cérebro, para conseguir o máximo de informações sobre as movimentações que eram realizadas por seus sócios. Mesmo sabendo que o caminho era sem volta, ele não imaginava que, além deles, outras organizações estariam envolvidas neste círculo de crimes, como uma seita religiosa e seu perigoso pastor.
Capa do Livro |
Daniel Nonohay utiliza de um recurso literário que traz uma linha cronológica paralela transmitindo o leitor diretamente para um dos pontos cruciais da história.
Confira um trecho do livro
“Acessei a rede e carreguei os depoimentos e as demais provas. A película piscou, solicitando que eu permanecesse imóvel, enquanto autenticava os documentos com base na minha leitura biométrica. Os procedimentos eram realizados em silêncio, mas um dó menor mudo, contínuo e tenso podia ser quase ouvido vindo do sistema.” (p.17).Inicialmente o livro é narrado em primeira pessoa, como o trecho acima onde o protagonista está analisando alguns dados. O autor traz um estilo próprio que transmite através da escrita o caráter, os sentimentos dos personagens e, de certo modo, faz o leitor criar um paralelo entre o drama da ficção com a própria realidade, uma decisão simples como uma pegadinha pode colocar em risco Ramiro, sua esposa, os sócios e todos aqueles ao seu redor.
Um Passeio no Jardim da Vingança, não é só uma história de drogas e tecnologia, fala sobre atos e consequências, Nonohay consegue trazer elementos de produções como Black Mirror, iBoy, entre outros que misturam tecnologia, com drogas, conspirações e coisas do gênero.
Sobre o autor
Daniel Souza de Nonohay nasceu em 1973 e mora em Porto Alegre. É casado e pai de duas filhas. Juiz do trabalho, escreveu o seu primeiro romance à mão, em dois cadernos pautados, quando tinha 17 anos. É autor de artigos técnicos, na área do Direito e políticos, que foram publicados em livros, jornais e sites. Organizou livros de coletâneas. É colorado. Atuou como professor e é pós-graduado em Direito do Trabalho. Foi Presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho do Rio Grande do Sul. Atualmente, aproveita cada um dos seus poucos segundos livres para escrever, a sua segunda paixão.Confira abaixo uma crônica do autor:
Os homens de poucas palavras são os melhores*
Para você, leitor atento, não é surpresa que nosso herói se chame Odorico. Tampouco que ele seja um papagaio. Não tenha a pretensão, contudo, de reduzi-lo apenas a isso. Odorico é um papagaio-cinzento. Suas penas não possuem cor. Há, claro, uma pequena e ridícula cauda vermelha berrante, que ele sempre procura ocultar, constrangido.Cinza não é cor, mas uma simples indefinição entre luz e trevas, como diz o Seu Dono para as visitas que tenta impressionar com o incomum animal de estimação. Uma mera hesitação entre extremos.
Desde sempre, Odorico acostumou-se a ouvir: Olha o papagaio! Mas é cinza! O que ele tem? Não tem nada, diria se pudesse. Além de cinza, Odorico é mudo. Está ali, confinado e incompleto. Sabe que todos, menos Seu Dono, esperavam que fosse colorido, ao menos verde, e que falasse. Por toda a sua vida, acostumou-se a ser objeto de arroubos iniciais de curiosidade, por sua ausência de cor, e de imediato desinteresse, por sua quietude. Que pássaro sem graça, tinha dito uma das primeiras crianças que conheceu. Não entendia, na época, por que o achavam assim.
A vida o pintara de cinza (com rabinho vermelho) e não lhe dera o dom da palavra. Isto certamente influiu para o desenvolvimento de certo mau humor, que, em bons dias, derivava para um humor negro. Pena que não o podia compartilhar com ninguém.
Certa feita, uma velha senhora aproveitou-se da ausência do Seu Dono, agarrou-o na gaiola e passou-lhe um dedo babado na cabeça, para ver se era pintado. Ser discriminado, tudo bem, já estava acostumado àquela altura, mas baba branca escorrendo pelos olhos, isto era demais. Aferrou-se ao dedo com toda a força do seu bico, que sabia não ser pouca (uma das consequências de fazer tudo com a boca). A velha gritou, derrubou a gaiola, e, quando Seu Dono retornou aturdido, passou a vociferar que ele tinha um animal selvagem dentro de casa. Saiu profundamente ofendida. Odorico ficou lá, cinza, calado e babado, com o coração batendo rápido por entre sementes de girassol espalhadas e uma honra resgatada.
Seu Dono era um homem pequeno e afável, que mantinha a porta da gaiola aberta, quando estavam sozinhos. A casa estava sempre lotada de mulheres, que se vestiam em trajes mínimos, mesmo no frio. Homens vinham em levas, principalmente à noite, quando havia música e bebida. Conhecia os frequentadores assíduos, inclusive o Jaime, com quem mantinha longos monólogos ao final da noite. Certa vez, ele lhe disse, com voz mole, calça entreaberta e um copo inclinado na mão:
– Papagaio… Ainda bem que tu não fala.