Vai mesmo continuar?
Então resolveu prosseguir com a leitura? Bom, espero que, até o fim do texto, eu possa convencê-lo a passar longe de Desventuras em Série e, assim, conservar a felicidade que ainda resta em sua vida. Pois bem, vamos à tal série. Desventuras em Série é a adaptação da série de livros de mesmo nome escrita por Lemony Snicket. Trata-se de livros infanto-juvenis que conquistaram um grande público por seu estilo pessimista e, por vezes, aparentemente inapropriado para um livro de crianças. O humor refinado, o estilo único e o universo cativante fizeram alavancar a série, que estendeu-se por treze livros principais e algumas outras publicações extras.
Dos livros... |
Em 2004, Desventuras em Série recebeu sua primeira adaptação, que levou a série aos cinemas com Jim Carrey no papel de conde Olaf. Apesar de ter ajudado a difundir melhor a série (foi, inclusive, meu primeiro contato com ela), uma boa leitura dos livros revela o quanto a adaptação para as telonas tocou apenas a superfície da obra de Snicket. O filme não apenas retrata somente o três primeiros livros (o que é compreensível, pela duração do filme), mas também desfigura alguns aspectos chave da franquia, introduzindo um “final feliz” que destoa completamente da proposta da obra original.
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....ao cinema... |
Dez anos depois, em 2014, a Netflix anunciou uma nova adaptação de Desventuras em Série, dessa vez na forma de uma de suas séries originais. A revelação de que o autor (seu nome real é Daniel Handler) seria produtor executivo e um grande consultor para a série, assim como o anúncio de Neil Patrick Harris (de How I Met Your Mother) para o elenco, fizeram o projeto se tornar ainda mais aguardado. Lançada recentemente, a série é um dos grandes destaques da Netflix nesse primeiro semestre e, devo dizer, é um prato cheio para fãs e uma excelente introdução para novos espectadores, uma expressão que aqui significa “capaz de fazê-lo chorar feito um bebê pensando no destino das crianças Baudelaire”.
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...e agora no conforto de sua televisão |
Ainda dá tempo de parar, hein?
Do momento em que Violet, Klaus e Sunny Baudelaire recebem a triste notícia de que seus pais pereceram num incêndio que também levou sua mansão até a tentativa de fazer um dos órfãos cometer um homicídio numa serraria medonha, há uma sucessão de desventuras repugnantes. E um dos pontos altos da série foi ter conseguido adaptar com primazia o estilo de escrita dos livros, transmitindo com perfeição as tentativas do narrador de fazer o espectador largar a série, as piadas recorrentes com elementos da linguagem (como a diferença entre “literalmente” e “figurativamente”) e o aspecto quase que teatral pelo qual as personagens se relacionam.
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O narrador-personagem dá o tom e o humor da série... ambos do tipo mais pessimista |
Desventuras em Série introduz muito bem o espectador em seu pitoresco universo, o que é, também, um alerta a novos navegantes. Não espere por uma série que se passe na realidade ou que tenta justificar todos os seus acontecimentos. Aqui, é necessário desprender-se do mundo real, entender que a maioria dos adultos são imbecis e se convencer de que as habilidades de inventora, pesquisador e mordedora dos órfãos Baudelaire são realmente a única coisa com que elas podem contar.
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Conde Olaf em sua interpretação mais cruel e vilanesca |
Vai por mim, fecha essa aba...
A ambientação é outro ponto forte de Desventuras em Série. Os cenários, apesar de pequenos, são muito bem preenchidos, transmitindo bem as sensações relacionadas a eles e escondendo uma série de detalhes incríveis para fãs da série. É nítido o tom caricato dos ambientes e é bem interessante como ele vai progredindo de um aspecto colorido no início da série para um tom obscuro e cinzento ao final. O figurino dos órfãos também segue essa progressão, acompanhando o aumento de profundidade das desventuras vividas por eles.
Quem já assistiu ao filme reconhecerá quase todos os cenários existentes, mas felizmente a Netflix reservou uma grande novidade para os dois últimos episódios da série, que trazem os acontecimentos do quarto livro, até então inédito nesse tipo de mídia. E devo dizer que, até aqui, trata-se de um excelente trabalho de cenário, figurino e maquiagem. Desventuras em Série consegue diferenciar-se muito bem de tudo o que existe na Netflix, conferindo a si um charme único. Os únicos momentos em que a série engasga um pouco, nesse aspecto, é quando são recrutados efeitos visuais mais complexos. Provavelmente o orçamento não foi tão alto para uma computadorização gráfica refinada.
Sério?
O enredo de Desventuras em Série segue o clássico esquema de episódios contidos em si mesmos, porém sendo parte de uma trama maior. Cada dupla de episódios compreende um dos livros, e traz consigo seus próprios ambientes, excêntricos personagens e um plano diabólico do conde Olaf. No geral, a série consegue aliar muito bem a fidelidade aos roteiros dos livros com as escolhas próprias dos diretores. Quando a série escolhe seguir seu próprio rumo, o faz muito bem.
Essa diferença entre o livro e a série fica nítida ao apresentar muito precocemente a ideia de que organizações secretas parecem estar por trás dos acontecimentos da série. Essa noção só foi transmitida nitidamente aos leitores por volta do oitavo livro, mas, na série, é um interessante recurso para prender a atenção dos leitores. Códigos secretos, siglas misteriosas e símbolos recorrentes provavelmente lhe farão nutrir muitas perguntas desde o primeiro episódio. Graças a isso, a série também pôde se permitir explorar acontecimentos que não incluem diretamente os órfãos Baudelaire (algo inédito nos livros), como as ótimas cenas do conde Olaf.
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O que será esses recorrentes olhos? |
Embora esse adiantamento da ideia de organizações secretas ajude a manter o espectador engajado na série, pois já introduz mistérios curiosos e conecta mais diretamente os episódios, ele também suaviza um pouco a noção de desamparo dos órfãos Baudelaire vivida nos livros. Nos livros adaptados pela Netlifx, o leitor não tem consciência de que há alguns agentes secretos aliados ajudando-os por debaixo do pano muito menos da relação entre os seus primeiros tutores e seus falecidos pais. Embora as situações vividas pelos Baudelaire continuem desesperadoras nessa adaptação para a Netflix, elas perdem um pouco da total necessidade que as crianças tinham de contar com suas habilidades pessoais para não serem mortas ou sequestradas. Apesar dessa crítica, devo dizer que o aspecto que mais me incomodava nessa ajuda recebida pelas crianças se tornou um dos aspectos mais sensacionais da série quando ocorre um incrível plot twist nos episódios mais avançados.
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Violet, Klaus e Sunny: as crianças mais incríveis (e azaradas) que você irá conhecer |
Assim, em cada dupla de episódios, temos uma tentativa dos órfãos Baudelaire tentarem viver uma vida feliz em seu novo lar, um novo esquema maligno do conde Olaf e uma desesperada tentativa dos órfãos de exporem o disfarce e o plano do conde. Neste último ponto, as crianças acionam suas incríveis habilidades. Violet é uma inventora nata, e prender os cabelos com uma fita lhe permite ativar engrenagens em seu cérebro. Klaus, um exímio leitor, consegue desvendar mensagens codificadas e recuperar informações importantes sobre tudo o que se pode imaginar. Sunny, apesar dos poucos anos de idade, possui aguçados dentes que vêm a calhar em diversos momentos. As soluções que as crianças precisam encontrar para desmascarar o conde Olaf são sempre interessantes e, para quem espera por um dinâmica engraçadinha de perseguir o bandido, saiba que há muitas mortes, violência psicológica e pessoas atrasando a devolução de livros para a biblioteca.
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Esses quatro jamais compartilharão um momento de alegria |
Eu já mandei você dar o fora daqui!
Conforme nos aproximamos do desfecho deste artigo, espero ter tido sucesso em minha tentativa de afastá-lo dessa repugnante série. Tenho que dizer-lhe, mais uma vez, que as experiências vividas pelos órfãos Baudelaire do primeiro ao oitava episódio não são nada além de solidão, perigo e desespero. Se você preza por sua integridade psicológica, passe longe dessa série. Mas se, ainda assim, decidir encará-la… devo dizer que é realmente uma boa série!